sábado, fevereiro 04, 2006

"Exorcismos"

Prometi ontem que vos dava aqui testemunho de um comentário que, no blog "Som da Tinta" (http://sondatinta.blogs.sapo.pt ) , foi inserido a propósito de um "recado" de divulgação do blog "Lumege".

Vai a seguir. E amanhã insiro outro.
Z.O.

Acho muito importante este assunto ser referido, tocado, no sentido de se fazer a tal catarse.Falo pela experiência de uma pesoa que vive com alguém que esteve na guerra colonial. O meu pai esteve lá uns dois anos, ou um pouco mais (é um tempo que nem fica esclarecido exactamente tal é a vontade de distanciação que ele tenta de qualquer forma). São muitas poucas as vezes que ele fala desse tempo em que esteve lá fora, e o que fala são breves episódios de quem traz apenas o quotidiano de brincadeiras, de situações caricatas, acompanhados de fotografias a preto e branco dos momentos...mas mais do que isto, só o mutismo, a tristeza interior enorme. Sentida. O meu pai não fala. Diz quem o conhece de há muitos anos que o antes da ida para a guerra ele não era assim, ou tanto assim...só o conheci depois da guerra, como é lógico. E sempre tive essa imagem de um pai, de uma pessoa, fechada, triste, com "aspecto" de quem traz o peso do mundo atrás de si. Eu não compreendia. Um dia, há pouco tempo apenas, ele pediu-me para passar a limpo o testemunho/ recordação de dois episódios marcantes decorridos na guerra. A vista já não ajuda, dizia ele, com um jeito envergonhado, de quem está a pedir de facto algo que lhe está a custar pedir. Passei a limpo, reli com ele de um modo aparentemente frio, ele concordou com tudo de um modo tímido, a querer despachar a "coisa". Era para apresentar numa discussão de um Grupo de Terapia para ex combatentes. Ele nem oralmente consegue falar das coisas...tem de levar num papel. Depois, já sozinha, chorei. Nunca tinha percebido o meu pai. Nunca tinha entendido o porquê de tanta coisa, de tantos modos de ser que, no fundo, acabariam de condicionar o seu modo de relacionamento com os outros, com a própria família em casa. Entendi o seu modo de ser, lamentei tudo o que ele, e muitos dos seus camaradas tiveram de passar, obrigados, em nome de uma pátria qualquer que esquece facilmente as dores daqueles que dão a cara por "ela", descodifiquei aquele ar pesado, o tal mutismo, que afinal derivava da dimensão das memórias de um passado que eles não querem que aprenda a viver neste presente, admirei o meu pai pela sua atitude e coragem...compreendi-o finalmente, e isso foi o mais importante para mim...à custa de tanta dor. Por isso, e é apenas por isso que esta questão da guerra colonial tomou outro significado para mim, é que também vou passar o tal site para ele ver...nem que seja sozinho. Por isso, é que se deve continuar a falar "destas coisas"...exorciza-las para ver as coisas e veiver as coisas de um jeito melhor.

Susana Júlio

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei de ler, é bom que os mais novos se apercebam o que por vezes vai nas cabeças de quem passou pelo cenário da guerra,e digo isto porque sou dessa geração, enviado e descarregado em Angola para defenfer uma causa absurda.

Bem haja Susana